quarta-feira, 20 de abril de 2011

Aluga-se um coração: corpos de passagem, habitantes do fluxo

Independente do julgamento moral – e colocando a própria necessidade de revermos alguns de nossos códigos de moralidade –, os laços humanos de todos os tipos, especialmente os laços de intimidade, afeto e companhia, parecem se afrouxar na sociedade contemporânea. Constatação que não é nova, decerto, mas que se coloca como matéria para a arte, na medida em que esta nos interpela e problematiza nossa condição de estar no mundo.



Com efeito, independente do gênero e até da idade, a solidão, o temor de encontrá-la e a tentativa de aplacá-la sempre caracterizaram a vida moderna. No entanto, como se encontram as práticas, os afetos e os corpos quando os relacionamentos não são mais vistos como a garantia segura e permanente contra a solidão? Em que fluxos os indivíduos se lançam, e que novos bloqueios se impõem? Como os corpos passam, se esbarram, se encontram e desencontram, e o que eles procuram?



Aluga-se um coração desenvolve esse tema com a delicadeza, a violência e a minúcia que caracterizam toda busca ansiosa, sem deixar de lado os efeitos prazerosos, reconfortantes e mesmo desastrosos que incidem sobre as subjetividades. No que toca ao espetáculo, é notável a maneira como, na dança, os corpos compõem com elementos cênicos exteriores em favor de uma forma de expressão ora leve, ora pesada, que produz sensações contraditórias do lado do espectador.



E por falar na visualidade desses elementos cênicos, o que querem dizer esses toscos cartazes publicitários que, desde o início, já anunciam as recorrentes metáforas mercadológicas? São metáforas através das quais damos significado ao caráter transitório dos rolos e esquemas, herdeiros distanciados do ritualizado flerte, e hoje equiparados à categoria volúvel da cotação e da negociação. Mas ao lidar com a questão da aparência, os cartazes colocam um problema instigante: no jogo de mostrar e esconder, eles são o abrigo de corpos que fervilham, sustentados por pés que se contorcem irrequietos. Ao se moverem entre si, os corpos estão à vontade enquanto durar a aparência. No entanto, com que estranhamento os rostos se encontram quando os cartazes deslizam para baixo! Da fugidia imagem, ainda que eficaz em sua curta vida, ficamos indagando se é melhor desfazê-la ou mantê-la, um tema frequente nas redes sociais, por exemplo.



O jogo de aparências, ou do escorregar por entre elas, vai mais longe no movimento de línguas que roçam sabe-se-lá o quê, pois os olhos não vêem. É como na perseguição, em que se especula, através de um mapeamento tátil, quem está à espreita, aninhado na sombra de um canto escuro da balada ou em algum nickname insuspeito dos chats.



Restam as irônicas citações de “Eu sei que vou te amar”, clássica canção bossanovista, e da passagem bíblica da Segunda Carta aos Coríntios, na qual o amor figura como a maior, mais sólida e duradoura virtude. O amor romântico burguês e o amor divino eterno são colocados aí em vias de superação, ou pelo menos como mostra de que não são mais as únicas possibilidades de viver os afetos em nossa sociedade.



A dança conduz a desdobramentos incertos: ao caráter agressivo com que um corpo insiste, assedia e sufoca o outro; ao torpor, ao cansaço e à desolação que paira nos olhares. Saber o momento certo de conectar e de desconectar, conhecer os limites e possibilidades da conexão, define um novo campo de regras, as quais indicam que nem tudo é apenas trânsito e liberdade, e que nem todos os corpos estão disponíveis. O aluguel dos corações – por uma noite, por poucos dias – se dá à custa de preços e condições variáveis, e em relação aos quais novas formas de ser sujeito estão se constituindo e se colocando em cena.





Elson de Assis Rabelo


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