quarta-feira, 27 de abril de 2011

Qual a força deste coração?

Por Marcelo Sena*


A escolha de um título forte e de uma grande referência dos estudos da sociedade contemporânea nos faz chegar ao teatro com bastantes expectativas. Alugar um coração, pode trazer algumas ambigüidades: eu alugo o meu para alguém habitar; ou vou alugar o de alguém, para que eu habite? Preciso de um coração, pois o meu não me serve mais; ou alugo o meu, já que preciso que me habitem? E a grande liquidez tão bem metaforizada por Zygmunt Bauman, não apenas no amor, mas em todas as instâncias de nossa sociedade, nos faz também pensar se nesse espetáculo, a apreciação também será líquida, passageira, sem muitos compromissos?

Mas o que se vivencia enquanto espectador nos faz levar pra casa um coração a mais pra entender, pra questionar e, até mesmo, se surpreender com as ironias e metáforas de nosso posicionamento em relação a esse grande sentimento proferido por poetas, profetas e amantes: o amor!

Os pés, tido por objeto fálico e de prazer por muito psicanalistas, nos remetem ao nosso próprio enraizamento e sustentação para se colocar num lugar e para sair dele. É pelos pés que vamos, durante a infância, descobrindo como andar, pra poder sair e voltar, ou sair pra nunca mais voltar. E são as primeiras imagens que surgem no espetáculo: os pés descalços, que parecem inquietos e insatisfeitos no lugar em que estão - buscam saídas ou, quem sabe, outros pés para fazerem um outro par.

A utilização de elementos simbolicamente masculinos nos figurinos, como a calça jeans, cuecas, camisas de modelos masculinos reforçam uma construção de vocabulário de dança que o coreógrafo e diretor Jailson Lima vem imprimindo em seu trabalho dentro da Qualquer Um dos 2, não apenas pela escolha de um elenco masculino em suas criações nesta companhia, mas também por um pensamento de dança em que a movimentação desponta de grande tensões musculares e grandes impactos para desenvolver sua coreografia. Em momentos que parecem haver leveza e lentidão, percebe-se uma contenção de movimento, de tonicidade muscular, como uma represa que segura um grande volume de água. E é assim que o figurino não se destaca dos corpos, mas tornam-se corpo, parecendo a continuidade das fibras musculares e pele de cada um, dando mais força e tensão na própria utilização dos tecidos e cortes das roupas. Um trabalho de grande generosidade da figurinista Maria Agrelli.

Essa mesma força que vem impressa na dança do coreógrafo, move também os seis intérpretes-criadores que, apropriados desse dançar, conseguem dominar não apenas o movimento das extremidades, mas com grande domínio o centro e o rosto. Olhares que dizem muito, que parecem denunciar algumas entrelinhas do que está sendo sugerido em cada cena, nas ironias, seduções, imposições e dissimulações.

As cenas que trazem o tom da mercantilização do humano, pelos clichês da publicidade banalizada, conseguem também instalar um tom irônico ao expor nossas fragilidades em momentos de tanta carência e tanto egoísmo. As negociações possíveis, para poder ter breves momentos de carícia ou companheirismo podem custar valores além dos financeiros, arrancando nossa dignidade e deixando pra trás uma relação de humanidade, tomando conta daquilo que é tão bem midiatizado em nossa sociedade: a reificação, a mercantilização de tudo, desde algo concreto ao simbólico, do mineral ao humano.

E esses caminhos vão sendo muito bem percorridos pela composição das cenas, que não causam vazios ou excessos, nos dando uma sensação de estarmos sendo guiados por quem domina o assunto – não apenas o tema, mas também a própria dança.

A luz e música trazem ambiências para as cenas que buscam emergir o espectador numa espécie de voyer, num espectador que observa pela fresta o que acontece lá longe, com o outro, como num programa de TV ou numa tela de cinema. Lá, eles se degladiam para se amarem; aqui, nós nos acomodamos para ver passivamente nossa grande imagem refletida. Uma luz que evidencia elementos específicos de grande importância para o direcionamento de nosso olhar aos corpos, pelos recortes, blackouts e efeitos muito bem utilizados, sem beirar o exótico ou adorno.

Se há fragilidade no espetáculo, identifico em elementos cênicos que, tranqüilamente, podem ser solucionados com a realização de temporadas futuras: alguns figurinos que parecem necessitar de alguns ajustes; na edição de um vídeo, que acredito precisar de alguns cortes mais precisos e edição mais enxuta e, talvez, ser projetado em um fundo mais claro ou a utilização de um projetor mais potente; e num aumento de luz para os cartazes, quando são expostos para a plateia.

Na confecção do material gráfico, nos textos do programa e no blog criado especificamente para este espetáculo, percebe-se um cuidado com a criação que acaba de estrear, dando informações importantes e instigantes pra quem se permite pensar no aluguel deste coração. Respondendo a pergunta que lancei no início do texto: acredito não ser líquida a continuidade e aprofundamento que a Qualquer Um dos 2 vem realizando nesses 4 anos de trabalho.

Em contraponto à respiração final, tranqüila, dos corpos que transpiraram seus sentimentos, fica uma respiração contida em quem vê: e agora? Sou locatário ou inquilino desse coração? Se é que ainda lembro de ter um…



*Jornalista e artista convidado pelo SESC-Petrolina para escrever sobre os espetáculos do 4º Festival Vale Dançar.

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